quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Nada


Foi quando os teus olhos me tocaram pela primeira vez. Quando as tuas mãos se materializaram num toque quente e doce que fez o meu espírito sorrir.


Quando chorava, sozinha, num canto qualquer, à chuva. As noites sucediam-se, os comprimidos acabavam, o desespero nunca. As palavras que tinha nunca eram suficientes para descrever o vazio que sentia dentro de mim, a explosão na minha alma que sempre ameaçava acontecer mas que sempre, sempre, como eu, cobarde, nunca acontecia. Quando voltava todas as minhas energias para o querer nada, sendo tudo o que era. O facto de eu ser tudo o que tinha sempre me fez não querer existir. Um sentimento de pertença perdido pedia às almas desacompanhadas por alguma luz que me guiasse.

Paraste, perguntaste porque chorava. Os teus passos deixaram de ecoar, sendo o silêncio apenas desafiado pelos carros que pisavam as poças no meio da rua fria. Os meus soluços mudos não eram suficientes para te pedir para ires embora. Nada era suficiente nos resquícios da minha alma que dava ao mundo. Não queria nada de ti, nada de ti senão a tua ausência, o não ter a tua ameaça diante de mim disfarçada de empatia. Tinha aprendido que certos sentimentos, certas acções, estão reservados para humanos doutro nível, alguém que mais possa perceber a plenitude de existir, alguém com um presente presente, não alguém como eu, um presente sempre colado a eternidades sofridas, ora em silêncio, ora em gritos, overdoses fosse do que fosse… cortes fosse do que fosse.

A minha auto-destruição era sempre algo que me deixava um incrível sabor de tristeza pela incapacidade de culminar. O medo das tuas mãos, a uma par de distâncias de mim, o medo da tua voz grave, fazia-se sentir. O condicionamento era forte, e todo o meu resto de instinto de sobrevivência me dizia para me afastar. Sei porque não o fiz. Cansada da incapacidade de me auto-destruir, entreguei-me ao destino, personificado em ti, pedindo para que fosses mau, que fosses terrível, e me fizesses o que eu não conseguia fazer.

- Estás bem? Estás perdida? – perguntaste, perdido perante o meu silêncio. Agarrei os joelhos o mais forte que pude. O meu corpo queria fechar-se perante uma voz masculina, eternamente associada a tudo o que de mais vil existira para mim. Inclinaste-te, falaste com calma, assustado perante o meu susto. Sem resposta, baixaste-te, e tocaste-me. O teu indicador, dobrado, tocou no meu queixo, pedindo-me para o levantar. Como um robô sem força, cedi ao teu pedido, e as minhas pupilas gigantes, alojadas nos meus cansados e molhados olhos, fixaram-se no porto que era o teu olhar. Esticaste o dedo e deslizaste um pouco a mão, espalhando por mim o teu calor que relembrou o meu corpo saudoso o que era o contacto. – Tem calma, não te vou fazer mal – disseste, com um tom que me era desconhecido. Abri os olhos vermelhos, atenta, tentando descortinar se seria isto aquilo a que chamavam de carinho, algo que me esforçava, sem esforço, por me acreditar que nunca tinha tido – Estás perdida? – voltaste a perguntar. Abri os lábios secos, senti a pele estalar, a familiar mas leve dor fazer-se anunciar, não te consegui dizer nada senão entregar-te um leve levantar de sobrancelhas – Queres que ligue a alguém, queres que chame a polícia? – perguntaste, com o maior dos cuidados possíveis. Foi aí, mais ou menos, mais coisa menos coisa… foi aqui que senti o teu outro calor. Senti o calor da tua pele, do teu corpo, descer para segundo plano, sentindo algo crescer, miudinho, algo que me deste e em que me viciaria. Batalhei. Se eras um estranho e se não me querias fazer mal, não queria nada contigo senão o teu desaparecimento. Se sempre sentira desilusão por querer tudo e acabar com nada, senti o desespero da desilusão de desta vez querer o nada e poder o tudo diante de mim. Não me poderia dar ao luxo de voltar a querer o tudo outra vez. Por alguma razão não o merecia nem nunca o tinha merecido, e uma nova desilusão apenas acentuaria a dormência, apenas me traria de volta a períodos de sonhos criados e realidades desfeitas. Agitei-me, abanei-me, ainda sem nada dizer, afastei-te com o olhar. – Desculpa, desculpa… eu vou. – Disseste, afastando-te um passo para trás, preocupado, como se me tivesses magoado. Virei-me um pouco de lado, abracei ainda mais os joelhos, querendo que me destruíssem o coração. Ficaste uns segundos e depois, como sempre, como toda a gente, foste embora. Como te pude culpar por teres ido embora quando te tinha expulsado? Como pude culpar tanta gente na minha VIDA que expulsei antes que me expulsassem? Afastei os dolorosos pensamentos e concentrei-me no frio que sentia, concentrei-me na roupa áspera colada ao corpo, em tudo o que me afastasse das memórias que não queria ter.

As gotas a rebentar o chão, os carros a pisar as poças de água, voltaram a ter como companhia os teus passos na rua solitária. Um a um sentia-te a desaparecer. No dia seguinte não me lembraria de ti, não serias mais nada senão um nevoeiro estranho do dia anterior, como tudo sempre era. Um a um, os passos continuaram, até pararem. Imaginei-te a dobrar a esquina e a desaparecer, e pensei mal de ti, pensei terrível de ti, por seres mais um dos insensíveis e estupidamente privilegiados humanos com um toque de sorte. Decidira que eu nunca tivera azar, mas tudo o que existia tinha tido sorte, um brinde guardado para todos menos para mim. Cedo ouvi outros passos ecoar. Encostei-me o máximo à parede de tijolo, como que tentando desaparecer, se não de vez, pelo menos na vista de quem viesse, da sua atenção. As sombras anunciavam a presença cada vez mais iminente e o cruel medo aparecia para me cumprimentar. Parou do meu lado. Como seria possível que duas pessoas seguidas quisessem algo de mim? Como seria possível se eu não queria já nada de ninguém? A pessoa continuou parada, e num daqueles instintos que desconhecia e de vez em quando davam de si, espreitei.

Voltei a ver-te, eras tu, e voltei a sentir o calor das tuas mãos, do teu olhar, tudo o que me transmitia algo, quem sabe, doutras VIDAS, doutras pessoas.
- Desculpa, – disseste, voltando a baixar-te – mas não te posso deixar aqui. Não queres que chame ninguém, não queres que chame a polícia… Que queres que faça? – perguntaste, oferecendo-me uma pausa mascarada de convite, que nem rejeitei nem aceitei. Queria olhar para a frente, ordenando-te mais uma vez que desaparecesses, mas o meu olhar, furtivo e ameaçador, não conseguia largar o teu. – Ouve… nem sei porque estou a dizer isto… mas se quiseres podes ficar em minha casa hoje. Está muito frio, está a chover, e tu, nitidamente, não estás bem… não tens nada com que te preocupar, podes acreditar em mim. – Não pensei. Não pensei nem disse nada. O teu calor fez-me levantar, a custo. As pernas doíam e mancava um pouco pela sua dormência. Mantendo-me a um metro de ti, de braços agarrados ao peito, o carapuço roxo na cabeça, caminhei contigo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tenho que alinhar os meus links e colocar lá o "Desalinhos" :)

Grande abraço ;)

NO disse...

Algumas pessoas fechasse tanto que os outros nem podem chegar a eles... pode acontecer que a pessoa deixe os outros aproximarse, mas nao muito e nao sempre...

Gostei da istoria mais do que pensava :)