domingo, 15 de fevereiro de 2015

Excerto de "Ventre", Capítulo XII

Os gémeos esperavam sentados à mesa olhando para a mãe que, com um pijama branco de colarinho vermelho já coçado, tirava o pacote de leite do frigorífico. “Só abri ontem e já tem um cheiro esquisito”, ouviram-na dizer, depois de sentiro aroma do Mimosa meio gordo.
- Emprestaste algum album meu a alguém? – perguntou o pai, de calças de pijama azuis e de tronco nu, exibindo um tronco onde uma barriga pedia permissão para continuar mas que não conseguia, ainda, rematar um aspecto naturalmente saudável.
- Não, porquê?
- Estava a realfabetizar a minha colecção e não sei do Little Girl Blues.
- Da Nina Simone?
- Sim, não sei dele. E é muito importante. É uma primeira edição! Já te disse que não emprestes nada a ninguém, caramba! Eles que vão à net e saquem, porra!
- Olha os miúdos! E já te disse que não emprestei nada a ninguém! – respondeu Adriana, subindo a irritação.
- Não, foram os miúdos que os levaram para tocar na pré. Nina Simone é muito popular nessas idades!
- Tu estás parvo ou quê? Tu achas que algum dos meus amigos ia querer um vynil?! Quem é que ouve essas mer * essas coisas hoje em dia?! Tens razão, os meus amigos vão à net sim senhor, porque vivem neste século, não se querem armar em intelectuaizinhos da treta!
- Ah, podes crer que eles não conseguiam armar em intelectuais nem que lessem os Tolstois todos. Ai desculpa, não deves saber quem foi Tolstoi. Afinal de contas ele já não é vivo.
- Vai à merda, Justino! Deixa-me, por favor, dar o pequeno-almoço aos teus filhos!
- Desculpa, não te queria retirar dessa tarefa tão árdua e difícil! – respondeu, a voz a trovejar, e saiu. Telmo e Gustavo olharam entre eles, confusos sem perceber o que se estava a passar, amedrontados mas, sobretudo, focados na mãe, o olhar inquisitivo apontado ao pacote de leite.
- São sinónimos! – gritou Adriana, que gostava de ter a última palavra, nem que ela não fosse importante ou, até, escutada.
Justino passou a manhã a realfabetizar os a sua colecção de quatrocentos e vinte e nove vynil, de vez em quando ouvindo uma faixa de Duke, outra de Dizzie, outra de Charlie. Tocava “A Night in Tunisia”, de Dizzie Gillespie, e Adriana estava sentada na mesa branca da cozinha a ler uma revista qualquer. Levantou os olhos e olhou para Justino. O seu marido estava sentado no chão, encostado ao sofá com as pernas assentes na mesa à sua frente. Do lado de cá alguns álbuns, do outro a grande janela de onde se podia ver um pouco do Porto onde se conheceram. Justino ouvia a música de olhos fechados e Adriana olhava bem para ele, bem para ele. Onde andava aquela pessoa?
Meses antes, depois de uma discussão que começara com um comentário de Adriana sobre a Palestina e que acabara aos berros com duas jarras e uma estatueta partida, Adriana fechou-se no quarto a chorar. Permaneceu aí duas horas. Acalmou-se, fez a mala, abriu a porta do quarto. Assomou à sala, prestes a anunciar a sua despedida, mas encontrou Justino a ouvir música, certamente jazz, com os auscultadores nos ouvidos, de olhos fechados. E viu-o, mais uma vez. Viu, não quem ele era, mas quem ele podia ser. A maneira como arqueava as sobrancelhas e mexia os lábios, a maneira como respirava. Adriana viu o rapaz que conhecera aos vinte e dois, viu o rapaz que sonhara, viu o rapaz por quem se apaixonara. Voltou ao quarto e nunca ninguém soube da sua quase-partida.
Hoje, naquele dia, Adriana via o mesmo. Toda a imagem, aliás, fazia parte de um quadro, e se a sua versão adolescente tivesse viajado ao futuro e visse aquele quadro, ficaria contente com o que lhe prometiam. Mas que pena que as pessoas sejam mais complexas do que uns pequenos instantes aqui e ali. Que pena que não possamos filtrar e mandar fora tudo aquilo que não interessa. Que pena que aquela pessoa que calmamente ouvia palavras cantadas há cinquenta anos, ritmando suavemente com o pé direito, fosse a mesma pessoa que uma vez a tinha ido buscar ao quarto onde chorava descontroladamente, a agarrado com os dois braços pela cinta e a atirado para o sofá da sala, com um dedo em riste e berros e saliva e lágrimas e crianças confusas no quarto do lado. Que pena. Era impossível deixar-se levar mais. O fosso entre eles era demasiado grande e, não se conseguindo já tocar, por mais que esticassem os braços, podiam apenas ouvir-se. Mas o fosso abria, abria, abria tanto que, naqueles tempos, precisavam de gritar para o lado de lá do fosso para serem ouvidos. O fosso não parava de abrir, e os gritos deixariam de ser ouvidos e, mais tarde ou mais cedo, cada um teria de voltar as costas e procurar alguém que estivesse do mesmo lado daquele desfiladeiro. Talvez houvesse alguém. Havendo alguém podiam, quem sabe, antecipar o fosso e começar a construir largas e compridas pontes antes que ele aparecesse, pontes que lhes permitissem continuar a tocar-se por mais que o fosso quisesse abrir-se, pontes que permitissem a um enamorado viajar para o lado do outro e ficar aí para sempre, deixando o fosso levar consigo os seus velhos modos, hábitos e manias. Adriana receava, contudo, que o fosso para os lados de Justino dessem toda a volta, e o seu marido estivesse condenado à solidão.

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