Excerto de “Daqui Ali”,
Ca´pitulo VII.
Vang Vieng, Laos. Prisao.
(...)
Quando
fui ao hostel deles ver se o Ilias queria vir fazer “tubing” não estava lá
ninguém. Talvez o desenrolar da noite tivesse sido completamente diferente...
Comi
qualquer coisa, algo mais ocidental para variar, que o estômago também precisa.
Descansado da VIDA comprei uma carteirinha de plástico a dizer “Vang Vieng”
para pendurar no pescoço e assim me sentir mais à vontade no rio sem me
preocupar com o dinheiro, e lá fui alugar a minha bóia. Estava chuvoso, mas
quente, agradável. Munido já do instrumento fundamental para o “tubing”, enfiei-me
numa tuk-tuk e, juntamente com cinco ou seis turistas, quase todos jovens
ingleses, subimos o rio. Chegando, vi uma corda que atravessava o leito de uma
margem à outra e outra corda amarrada a esta com um barco todo podre na outra
ponta, para que não fosse com a corrente. Atravessámos as águas e logo
estávamos no primeiro bar, uma cabana de madeira mesmo à beira-rio, cheia de
pessoal sem mais nada a fazer senão curtir ao máximo aquela tarde. Estava toda
a gente animada, sorrisos no rosto, música e boa onda. Não havia ninguém a
vomitar, ninguém à pancada, ninguém aos linguados. Daí até anoitecer desceríamos
o rio nas nossas bóias, sempre de bar em bar até ao derradeiro. Fui sozinho,
mas rapidamente encontrei grupos aleatórios de pessoas que instantaneamente se
tornavam amigos. Guardo aquela tarde como um bom momento na minha viagem. Sorri
muito, falei muito, saltei para a água, nadei, conheci um sem número de pessoas
que nunca mais vou ver.
Tínhamos
de voltar até certa hora para reaver o depósito de alguns euros. Quando inicialmente
levei a bóia, estava convencido de que chegaria a tempo. Mas claro que não! Como
estava a curtir, deixei-me ficar até à noite. No final estava com um português
e mais cinco ou seis pessoas, e havia apenas três bóias. Adorei a maneira como descemos
o rio, três em três bóias, e os restantes agarrados às mesmas, mantendo-as ao
mesmo tempo unidas, como se fôssemos um par de células. Um de nós sabia onde
sair, por isso não corremos o perigo de que tinha ouvido falar de falhar a
saída para a vila. Contudo, ao chegar, percebi que é preciso alguém estar
completamente fora para não reparar naquelas luzes vermelhas enormes a apontar
o caminho. Se por um lado nenhum de nós estava sóbrio, por outro ninguém estava
fora de controlo. Apesar da atmosfera de festa, os nossos espíritos estavam
serenos e sorridentes.
Quando
regressámos a Vang Vieng, alguns foram jantar, outros foram para os bares. Eu
fazia parte deste último grupo e isso foi, parece-me, um erro trágico – não ter
sido suficientemente simpático para comigo mesmo e enfiar alguma comida naquele
estômago vazio. No bar, a festa continuou. Daí para a frente, é tudo uma
mistura de imagens e sons que se fundem e aparecem e desaparecem sem eu
conseguir que façam sentido. Sei que fui mudando de amigos, falando, bebendo. Depois
de um período de que não me lembro minimamente, a primeira coisa de que me assalta
a memória é de ter esbarrado em algo. Depois lembro-me de ter as minhas mãos
algemadas e de ter sido apanhado por alguém de calças verdes e t-shirt, que me
enfiou num carro qualquer, sem me explicar o que se estava a passar. “Fui
raptado...”, pensei, confuso e aterrorizado, sem saber que era a polícia que me
levava, “Como é que se chegou a isto, como é que estraguei tudo?”. Estes
momentos, e os subsequentes foram, sem dúvida, os piores da minha VIDA. A
viatura descaracterizada movia-se entre a escuridão ao longo de minutos que
pareciam não acabar, e quando parámos, enfiaram-me numa cela já repleta de
vinte e um laocianos. Sentei-me num canto, tentando pensar que caralho se
estava a passar. E senti que ia morrer. Não queria falar com ninguém – só
pensava nos filmes que tinha visto, onde os raptores nunca querem que os reféns
falem uns com os outros, para que assim não combinem nenhuma revolta. “Sou o
único estrangeiro aqui. Devo ser o primeiro a morrer”, pensei. Ouvia uma
rapariga na cela ao lado aos berros incessantes e pensei que era outra
estrangeira que tinha sido raptada e estava a ser violada. Eu queria salvá-la.
Queria libertar o pessoal da minha cela e salvá-la a seguir, sendo este
instinto, hoje em dia, a única coisa positiva que posso retirar disto tudo, a
aprendizagem de como reajo em situações extremas.
Esperei
que toda a gente adormecesse, chorei um bocadinho, disse adeus na minha mente a
todos os que amava , e decidi fazer algo. Procurei em desespero por uma saída
mas não havia uma única chance, estava tudo selado. Não queria render-me sem
dar luta. Havia um gajo ao meu lado que me parecia estar em conluio com os
raptores. Eu estava confuso, aterrado. Lembrei-me daqueles cenários em que põem
alguém lá dentro para os alertar de possíves revoltas. Numa das mais loucas
decisões da minha VIDA, e achando que era a minha última alternativa, dei-lhe
um pontapé na cabeça. Toda a gente acordou e eu gritei “Vamos revoltar-nos,
vamos revoltar-nos! Nós conseguimos!” vezes sem conta. Mas ninguém fez nada.
Não conseguia perceber; como podiam estar tão apáticos face aos seus destinos? “Já
o aceitaram”, pensei.
Na
verdade, tive sorte em não ser espancado, soube no dia seguinte.
Pode
parecer ridículo que nunca me tenha ocorrido estar na prisão. Talvez isto ajude
– era uma cela de quatro por dez metros para vinte e duas pessoas. Havia uma
porta com um pequeno buraco, duas janelas cobertas com madeira. Não havia nada
senão chão e uma sanita partida num canto. O círculo de mijo chegava até mim,
mas na altura aquilo era o menor dos meus problemas. Não havia colchões, ventoinhas,
espelhos, nada. Só espaço, um monte de gente e uma sanita partida.
-
Desculpem-me – disse, ao sentar-me, derrotado, após a minha tentativa de
revolta – não lhes digam nada, eu não quero ser o primeiro a morrer...
Um
rapaz começou a falar comigo. Eu não queria falar com ele, mas mesmo assim ele
falou comigo, o que me levou a pensar que ele estava a trabalhar para “eles”,
que pudesse ser daqueles que já lá estavam há tanto tempo que se tinham tornado
um dos membros dos raptores – a ponte. Estava num modo tal de auto-preservação
que a minha paranóia não me permitia confiar nele. Até que ele começou a fazer
algum sentido quando disse que eu estava na prisão. E que eles não iam
matar-me. Até este ponto eu não fazia a mínima ideia do que se estava a passar.
Podia ter perguntado aos outros reclusos quando lá me enfiaram. Mas toda aquela
situação era tão terrífica que o único cenário que imaginei foi o de rapto – alguém
que me tivesse apanhado na rua, algemado e enfiado numa cela imunda e
mal-cheirosa. Sabendo que, afinal de contas, tinha sido preso, podia dormir.
Quando
acordei fiquei na minha por um pedaço, até que o Ola, que me dissera na noite
anterior que eu estava na prisão, veio ter comigo.
-
Eu vou ser teu amigo – disse-me. Explicou-me o que se estava a passar, e
disse-me que eu provavelmente seria libertado até ao fim do dia. Era um rapaz
porreiro e eu via que ele não pertencia ali. Quero dizer, de certa forma, só
violadores e assassinos pertenciam a um sítio tão horrível quanto aquele, mas
eu conseguia ver que estava a ser mais difícil para ele do que para alguns dos
outros. E talvez tenha sido por isso que, apesar de ter dito que “seria meu
amigo”, aquela foi a única conversa que tive com ele. Pouco depois disto,
alguém do lado de fora chamou pelo falang.
Vesti a minha t-shirt e fui lá fora. Apercebi-me de que aquela prisão não era
mais do que um bloco de cimento protegida por arame farpado no meio de um
descampado. O guarda esperava-me aí.
-
O que é isso? – perguntou-me, mal cheguei, apontando para os meus calções
molhados. Senti que o fez para me intimidar, como que me recordando das
condições em que estava.
-
É mijo. Dormi ao lado da sanita – respondi. Apressou-se depois a dizer que eu “tinha
entrado numa casa e partido tudo” e que “toda a gente vira”. Eu sabia que não
tinha partido nada. Desde que bebi a minha primeira cerveja, seja há quantos
anos tenha sido, nunca tive uma explosão violenta devido ao álcool. Mas doía-me
a cabeça do lado direito, por isso pensei se teria caido e batido em algo,
talvez uma mesa, e a tivesse partido. Era tudo o que eu podia pensar. Mas será
isso “tudo”? E seria necessário ter de pagar trezentos euros, que era o que ele
estava a pedir? Mandou-me de novo para a cela, quando eu insisti que não tinha
partido nada. À medida que me encaminhava para dentro, um outro disse que eu
ficaria lá um mês – não foi fixe, nada fixe.
Não
tinha a certeza de nada, mas achava que talvez saísse no dia seguinte. Talvez
no dia a seguir a esse, quem sabe. Tentei descontrair-me, mas era difícil. Lá
dentro, as pessoas começavam a abordar-me, especialmente dois rapazes porreiros,
o Matao e o Kamlao, aqueles que falavam melhor inglês e que seriam pessoas
fundamentais para que eu não stressasse ainda mais. E um outro, cujo nome já
esqueci, que me disse que eu tinha um bom coração. Tentava dormir, para que o
tempo passasse mais rápido, mas já não havia mais sono em mim. O pessoal era
bastante amistoso, partilhando entre si cigarros, dando-me alguma água sem eu
pedir, passando-me algum arroz. O arroz... Adoro provar coisas novas, e o Laos
foi o meu país preferido no que diz respeito a comida, mas aquilo que comiam
naquela prisão... Bem, mantem-nos vivos, é isso, simplesmente. Tinha na mão uma
bola de arroz pegajoso que afundava num molho que estava no meio do círculo.
Foi para mim interessante ver como o pessoal se sentava nas duas refeições, em
grupos de cinco ou seis, passando entre si diferentes “extras” como um ovo ou
uns fios que sabiam a peixe. Cedo aprendi os costumes e passei, depois de uma
pequena trinca, uma pequena posta de peixe que alguém me tinha passado, vendo
na cara da pessoa que o recebeu alguma surpresa por eu o fazer. Além disto,
segundo o que me disseram, essa comida, que partilhavam todos entre si, não era
providenciada pelo estado, mas pelas famílias dos prisioneiros.
Aquele
era um dia especial. Talvez porque a sanita estava partida e os aromas não era
exactamente de lavanda, a porta de madeira estava aberta, havendo então apenas
um gradeamento entre nós e o mundo. O pessoal revezava-se ocupando lugares à
volta deste fenómeno e eu permanecia no meu canto a tentar, em vão, ver o quão
engraçado tudo aquilo era. O Kamla aparecia, de vez em quando, para falar
comigo. O seu pai tinha-o posto na prisão um mês, porque ele andava a tomar
muitas drogas.
-
Nos primeiros dois dias estava tão furioso que até dei um pontapé na porta e
fiz-lhe um buraco... Mas agora estou ok, e não estou zangado com o meu pai. Agradeço-lhe,
sabes?
-
Vais continuar a tomar drogas?
-
Só erva e álcool – respondeu.
Eu
tinha trabalhado com toxicodependentes no passado, e cheguei mesmo a viver na
mesma casa que eles, na Noruega, durante meio ano. Mas naquele momento estava ali
como se fosse um deles. Algo tinha corrido incrivelmente mal na noite anterior.
A
cela à frente e a outra ao lado estavam cheias de raparigas, todas prostitutas,
e o pessoal entretia-se, dizendo-lhes aquelas
coisas, ou a espreitar através de um buraco na parede que parecia ter demorado
meses, ou anos, a escavar.
-
Elas estão a dizer que querem tomar um copo contigo – diziam-me.
Eu
tentava dormir. Nada.
O
tempo. O tempo esticava-se como nunca antes.
Eventualmente
chegou a altura do banho. O Matao aproximou-se e disse que eu podia usar uns
calções que ele tinha e que estavam limpos. Isto para mim foi uma benção,
porque não estava a morrer por tomar banho e depois voltar a vestir os meus
calções cheios de mijo seco de outras pessoas. Juntámo-nos todos no exterior,
debaixo do olhar do guarda, ainda dentro do arame farpado, à volta de um
pequeno tanque de água. Quando o caneco chegava às nossas mãos tentávamos ser
eficientes, lavando os nossos pecados nos poucos segundos que tínhamos
disponíveis. Reparei como um grupo de quatro pessoas, ao mesmo tempo, enchia as
garrafas de água. Não há Luso na prisão. Alguém passava um sabonete, fazíamos o
melhor possível, e depois tínhamos o caneco na mão pela segunda e última vez.
Este foi daqueles momentos que muitas vezes tenho, em que olhei à minha volta,
como se saísse de mim próprio e visse aquela situação doutro plano e pensei “se
há situações em que eu nunca me imaginei...”.
De
volta lá para dentro. A espera. A espera.
Não
eram permitidos cigarros na prisão, mas desde que a polícia não soubesse, o
guarda contrabandeava-os. Ah, e claro, desde que nós, e por nós quero dizer eles, pagassem uma propina. Bem, cigarros e outras coisas como uma
garrafa de água ou algum whisky.
Pouco
tempo depois de fecharem a porta de madeira, voltaram a chamar-me lá fora. E novamente,
o homem queria o meu dinheiro. Quando eu repeti que não tinha partido nada, e
certamente nada assim tão caro, ele mandou-me entrar outra vez, para meu
desespero. Virei-me, derrotado, e tive ainda a gratificação de um pontapé.
-
Não estou bem, pá... – disse eu, ao Kamla. E não estava. Estava mal. Bastante
mal. Respirei fundo duas ou três vezes e decidi que desistiria daí a dois dias.
E foi essa a minha ideia durante as próximas oito horas, até que pensei nos
meus, que não faziam a mínima ideia do que se estava a passar. Já não falava
com eles há alguns dias, e por isso achei sensato desistir no dia seguinte.
-
Não penses tanto – diziam-me os meus colegas reclusos, notando o meu olhar
estático.
-
O primeiro dia é o pior, certo? – perguntei ao Kamla, que serenamente anuiu.
-
Não te preocupes, não penses tanto, falang...
E
então deixei de o fazer. Rendi-me aos factos. Eu estava ali, e naquele preciso
instante não havia nada que eu pudesse fazer. “Também isto passará”, repeti, um
par de vezes, para me tranquilizar. E passou, já passou tudo.
Alguns
deles juntaram-se perto de mim, o baterista arranjou a sua bateria – uma
espátula e uma escova de dentes como baquetas, e uma almofada suja e uma
garrafa de água como tambores – e começou a tocar. O gajo safava-se bastante
bem, tal como os restantes, que cantavam canções tradicionais ao ritmo que ele
impunha. O Kamla tinha-me dito que eles geralmente cantavam muito, mas nesse
dia nem por isso, porque a porta tinha estado aberta um pedaço. Pediram-me para
cantar. Que se lixe, eu canto. Cantei então “Ó rama ó que linda rama”, com
todas as letras e fazendo um esforço para que pudessem apreciar a eventual
beleza da minha língua. Eles escutavam e tentavam, em vão, acompanhar.
De
vez em quando, o rapaz que tinha dito que eu tinha um bom coraçao vinha ter
comigo. A dada altura pensei que era o terceiro melhor no domínio da lingua inglesa,
mas à medida que o dia foi avançando mais pessoas vinham falar comigo e eu
apercebi-me que, na verdade, havia mais pessoas ali a falar inglês do que eu
tinha pensado. Este rapaz era uma personagem interessante. Às vezes eu não
percebia o que ele dizia e, depois de lhe pedir para repetir uma ou duas vezes,
simplesmente dizia que sim com a cabeça. Outras vezes ele falava tão perto da
minha orelha que eu receava que me fosse pedir algo estranho. Não aconteceu.
Tal como muitos dos outros a quem perguntei quais as razões do seu
encarceramento, as respostas não eram as mais claras. Disse-me que tinha o
coração partido e que os pais da namorada não gostavam dele. O rapaz estava
muito triste, tal como ela. À medida que me contava isto começou a chorar e eu
senti a sua dor, como se o conhecesse há anos, àquele rapaz que tinha conhecido
algumas horas antes. Talvez em situações limite nos abramos mais aos outros. Já
lá estava há sete meses, e ainda lhe restavam três. Muito tempo. Quando insisti
subtilmente para me dizer a razão para lá estar, só me disse que os pais da
namorada dele não gostavam dele. Não quis voltar a perguntar.
Quando
vi as pessoas a moverem-se de uma forma organizada, percebi que era altura de
comer novamente. O mesmo procedimento. Não tendo nada mais que fazer, queria
comer lentamente, para que durasse mais e assim tivesse uma mudança de rotina
mais prolongada. Mas não era possível. Não é que eles estivessem a devorar mãos
cheias de comida, mas não eram também exactamente as pessoas mais lentas, pelo
que tive de fazer o mesmo para não ficar prejudicado.
Não
sabia que horas eram, mas tentava orientar-me por um feixe de luz que via
através de uma fenda no tecto de madeira. Quando estranhei o facto de
permanecer sempre igual, constatei, através de outro pequeno buraco numa
janela, que estava errado, e a luz do tecto era artificial.
Depois
do jantar, três novos membros juntaram-se a nós . O Kamla disse-me que eram os “chefes”
dos reclusos, talvez por estarem lá há mais tempo, e que eu devia fazer o que
me mandassem. “Isto não é bom”, pensei. Durante o dia eles faziam uns trabalhos
quaisquer lá fora e depois passavam a noite dentro.
-
Ele está a dizer que ontem à noite quando começaste aos berros, queria matar-te
– o Kamla traduziu. Eu pedi desculpa e sorri um pouco nervosamente. Este mesmo
gajo ia ser libertado no dia seguinte e por isso mesmo estávamos prestes a ter
uma festa como nunca, nas palavras do Kamla. A música artesanal voltou e
apareceu também o whisky. Disseram-me para experimentar, mas eu achei que já
estava metido em problemas suficientes e disse que não. Eles disseram que não
havia crise e acabei por dar um gole. Nunca provei gasolina, mas estou certo
que o sabor é o mesmo daquele whisky caseiro laociano. Porque chamam àquilo
whisky será sempre para mim um mistério. O Kamla disse que já estava meio bêbedo,
e assim o parecia, apesar daquelas quantidades não darem para emborrachar
ninguém. Mas a verdade é que não parava de dançar, convidando-me de vez em
quando. Eu levantava-me, dançava um bocadito, e voltava a sentar-me. O ambiente
estava ruidoso. E também estava meio fixe. Há algo em estar sentado com quase
duas dezenas de homens semi-nus oriundos da outra ponta da Ásia numa cela
bafienta e quente ao som de uma bateria de escovas de dentes que torna aquele
momento numa experiência especial. Eu sabia que o Kamla queria que as raparigas
vissem o falang, porque às vezes,
mesmo antes de me pedir para dançar, ele tinha estado a falar com elas através
do buraco na parede. ‘Tá-se bem.
Um
dos “chefes” pediu-me para cantar duas ou três vezes. Não me apetecia muito,
mas cantei Bob Marley, a seu pedido. Contudo, acho que estavam à espera de
alguém que soubesse mais letras que aquelas do refrão.
Quando
as coisas começaram a acalmar, deitei-me. Tinha estado todo o dia à espera que
viesse a noite na esperança de que fosse mais fresco. Mas estava ainda mais
calor. Como é que era possível? Será que a adição de três corpos era assim tão significativa?
Pois
estava eu ali deitado, à espera do sono, enquanto alguns ainda cantavam e a
maioria dos outros conversava, quando o Kamla disse que eu devia dar algo aos “chefes”
como um sinal de respeito. Paciência, não tinha nada que estivesse disposto a
dar, por isso não dei nada. Um desses “chefes” já tinha brincado com o meu
anel, mas eu disse que tinha sido uma amiga minha a dar-mo e ele devolveu-mo.
Depois o Kamla disse que todos os novos reclusos tinham de mostrar a pila.
-
Estou só a traduzir… O pessoal está curioso acerca da pila dos falangs, porque dizem que é grande – e
enquanto ele dizia isto, o “chefe” que queria o meu anel e que estava deitado à
minha direita, começou a tocar-me no mamilo direito. Não estava com cara de
poucos amigos nem de quem me queria comer, mas comecei e sentir-me
desconfortável e a minha adrenalina começou a despontar.
-
Desculpa, méne, mas não vou mostrar a minha pila – disse, enquanto gentilmente
afastava a mão do outro “chefe”. Não tenho nenhum problema com nudez, e muitos
dos meus amigos já viram a minha pila tuga num ou noutro momento, tenha sido no
rio, no mar, no quarto-de-banho, chuveiro, ou qualquer outro lugar. Mas quando
é um pedido que a mostre, aí é quando
tu pensas “Hum, não vou mostrar nada hoje...”. Acho que o Kamla reparou no meu
desconforto, porque me disse para não me preocupar.
Estava
quase a adormecer quando me disseram que tinha de me mudar. A cela tinha
lugares reservados, dependendo da data de entrada. Contudo, alguém foi
suficientemente amável e apertou-se um bocado para que eu não dormisse no mijo
outra vez. Fui então para o outro lado da cela e tentei adormecer. E estava a
conseguir, até sentir uma mão no meu pénis. Afastei-a, e desta vez não fui
muito simpático ou gentil.
-
Não faças isso! – disse, veementemente, para o Kamla. Mas que caralho? Ainda
por cima era o Kamla! Ele pediu desculpa três vezes, quis ter a certeza que eu
não estava zangado com ele e disse “é só porque toda a gente está a falar da
tua pila”. “Foda-se, será que isto é suposto fazer-me sentir melhor?”, pensei.
Dormi.
E ninguém mais partilhou, pelo menos tanto quanto me tivesse apercebido, o
interesse táctil do Kamla pelo meu pénis.
No
dia seguinte, uma das primeiras coisas de que me lembro é de ser chamado lá
fora. “Lá vamos nós outra vez”, pensei. Mas desta feita foi diferente. Disseram-me
para entrar na carrinha. Tentei voltar lá dentro e vestir os meus próprios calções
e dar os que tinha ao Matao, mas a polícia não podia esperar.
Levaram-me
até ao meu hostel e revistaram o meu quarto. Para meu agrado estava lá tudo –
tinha equacionado se, dando pela minha falta, alguém entraria no quarto para se
servir das minhas coisas. Também lá estava a minha carteira, de onde, sem
qualquer parcimónia o polícia tirou o equivalente a sessenta euros e meteu no
bolso. Mandou-me tomar banho. Não sabia qual era o próximo passo. Disseram-me
para vestir algo que ainda não tivesse usado, por causa do cheiro. Quando disse
isto pensei que fosse voltar para a prisão. Mas não aconteceu. Ao invés,
levaram-me para a pequena esquadra, onde bebi sofregamente quatro copos de água,
enquanto esperava, sentado numa cadeira a ver a fotografia de uma pessoa que
tinha morrido no “tubing” não sei quando. Passado um bocado o gajo mandou-me
entrar. Sempre o mesmo gajo. Disse-me que eu tinha entrado numa casa qualquer
para dormir, e tinha partido tudo, e toda a gente me tinha visto e que eu
estava aos berros. Não havia nada que eu pudesse fazer. Conseguia ver-me a
adormecer num sítio qualquer. Nunca me tinha acontecido, mas podia acontecer. Mas
não numa casa alheia. E nunca começaria simplesmente a partir tudo e começar
aos berros sem razão. Disse-me que tinha de pagar quinhentos euros. Nada bom.
Pensando
que, apesar de tudo, o pior já tinha passado, fui levantar dinheiro. Não podia
ficar ali para sempre. Quando voltei, estava lá uma senhora. Supostamente, era
a senhora cuja casa eu tinha visitado. Estava toda bem vestida, e sentámo-nos
juntos, os três, na sala de interrogação. Estava a falar em laociano, e ele
estava a traduzir. A primeira coisa que perguntou foi como é que eu tinha
aberto a porta. Eu disse que não sabia, porque não me lembrava de nenhuma
porta. Que porta? Que era aquilo? Seria alguma coisa real? Estava prestes a
ficar pior.
-
Ela quer que tu pagues dez mil dólares, porque diz que tentaste ter sexo com o
filho dela – o quê?! Aqui entrei um bocado em pânico. Fui apanhado
completamente de surpresa, e aquela vaca queria sacar tudo o que era possível
de mim. Eu disse que era impossível que tivesse feito tal coisa, e que não
tinha esse dinheiro. Insisti que falasse com ela, porque eu nunca faria algo
assim, o que ele fez, acabando ela por dar uma versão diferente do caso,
dizendo que afinal não tinha sido o filho, mas a filha. Mais uma vez tive de
ser firme aqui, negando tudo, até que polícia levou a cota lá fora para falarem.
-
Ela pode dizer o que quiser, ninguém sabe – disse-me ele, ao ouvido, quando
voltou e se sentou. Até este polícia corrupto estava a modos que do meu lado
nesta pequena janela do tempo. Ela voltou e disse que queria trezentos euros.
Eu tinha ido ao multibanco e tinha duzentos euros comigo, mas não podia
levantar mais dinheiro naquele dia, graças ao meu sagrado limite de
levantamento. Ela ligou ao marido e ele aceitou a descida de dez mil dólares
para duzentos euros. Quando perguntei para que era o dinheiro, o polícia disse
que era para pagar o vidro que eu tinha partido e limpar o resto da casa. Incrível
como é que supostamente eu tinha partido um vidro tão caro e não tinha uma única mazela, apesar de estar só de
havaianas, calções de banho e t-shirt. Quanto aos outros duzentos que tive de
dar à polícia, “é para a lei do Laos, estavas a fazer muito barulho”. Que é que
um mano há-de fazer?
A
senhora foi-se embora depois de eu me desculpar por, bem..., o que quer que
tenha feito.
-
Tens de pagar mais duzentos euros para a “lei do Laos” – disse o polícia.
-
Mas eu já te dei sessenta! Então só tenho de te pagar cento e quarenta –
respondi, lembrando-o do quão ávido ele estava ao tirar os sessenta euros da
minha carteira no meu quarto.
-
Mas tu tens de pagar mais duzentos! Os sessenta não interessam – repetiu, para
meu espanto. Após alguma batalha, lá consegui baixar o pagamento para o que era
suposto. Ele levou-me ao meu hotel, ficou com a minha câmara, bilhete de
identidade e carta de condução como depósito, porque só podia pagar no dia
seguinte, e foi-se embora.
No
próximo dia liguei-lhe e fui à esquadra. Ele estava em Vientiane, e tinha os
meus documentos. Paguei o resto, devolveram-me a câmara, pedi um recibo e
disseram-me que não mo podiam dar, porque o polícia que estava em Vientiane é
que tinha as chaves de uma gaveta qualquer. Naquele momento já nada importava. Só
queria bazar dali e dar aquilo como terminado.
E
depois tive de ir para Vientiane e arranjar um encontro com a última pessoa que
eu queria ver no planeta, para que ele me pudesse dar os documentos. Felizmente
o encontro foi breve. Ele apareceu com a carrinha, deu-me os documentos e
disse-me para eu não dizer nada à minha embaixada, ou podia meter-me em
problemas. Eu sei que quem se podia meter em problemas era ele... mas para
dizer a verdade, eu só queria meter aquilo para trás das costas. Ainda que não
me fosse possível esquecer, queria evitar pensar naquilo. Talvez devesse,
efectivamente, ter-me queixado da maneira como me trataram sem quaisquer
provas. Mas não quis. Partilho aqui a estória, valha ela o que valer.
(...)
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