Os
gémeos esperavam sentados à mesa olhando para a mãe que, com um
pijama branco de colarinho vermelho já coçado, tirava o pacote de
leite do frigorífico. “Só abri ontem e já tem um cheiro
esquisito”, ouviram-na dizer, depois de sentiro aroma do Mimosa
meio gordo.
-
Emprestaste algum album meu a alguém? – perguntou o pai, de calças
de pijama azuis e de tronco nu, exibindo um tronco onde uma barriga
pedia permissão para continuar mas que não conseguia, ainda,
rematar um aspecto naturalmente saudável.
-
Não, porquê?
-
Estava a realfabetizar a minha colecção e não sei do Little Girl
Blues.
-
Da Nina Simone?
-
Sim, não sei dele. E é muito importante. É uma primeira edição!
Já te disse que não emprestes nada a ninguém, caramba! Eles que
vão à net e saquem, porra!
-
Olha os miúdos! E já te disse que não emprestei nada a ninguém! –
respondeu Adriana, subindo a irritação.
-
Não, foram os miúdos que os levaram para tocar na pré. Nina Simone
é muito popular nessas idades!
-
Tu estás parvo ou quê? Tu achas que algum dos meus amigos ia querer
um vynil?! Quem é que ouve essas mer * essas coisas hoje em dia?!
Tens razão, os meus amigos vão à net sim senhor, porque
vivem neste século, não se querem armar em intelectuaizinhos da
treta!
-
Ah, podes crer que eles não conseguiam armar em intelectuais nem que
lessem os Tolstois todos. Ai desculpa, não deves saber quem foi
Tolstoi. Afinal de contas ele já não é vivo.
-
Vai à merda, Justino! Deixa-me, por favor, dar o pequeno-almoço aos
teus filhos!
-
Desculpa, não te queria retirar dessa tarefa tão árdua e difícil!
– respondeu, a voz a trovejar, e saiu. Telmo e Gustavo olharam
entre eles, confusos sem perceber o que se estava a passar,
amedrontados mas, sobretudo, focados na mãe, o olhar inquisitivo
apontado ao pacote de leite.
-
São sinónimos! – gritou Adriana, que gostava de ter a última
palavra, nem que ela não fosse importante ou, até, escutada.
Justino passou a manhã a realfabetizar os a sua colecção de
quatrocentos e vinte e nove vynil, de vez em quando ouvindo uma faixa
de Duke, outra de Dizzie, outra de Charlie. Tocava “A Night in
Tunisia”, de Dizzie Gillespie, e Adriana estava sentada na mesa
branca da cozinha a ler uma revista qualquer. Levantou os olhos e
olhou para Justino. O seu marido estava sentado no chão, encostado
ao sofá com as pernas assentes na mesa à sua frente. Do lado de cá
alguns álbuns, do outro a grande janela de onde se podia ver um
pouco do Porto onde se conheceram. Justino ouvia a música de olhos
fechados e Adriana olhava bem para ele, bem para ele. Onde andava
aquela pessoa?
Meses
antes, depois de uma discussão que começara com um comentário de
Adriana sobre a Palestina e que acabara aos berros com duas jarras e
uma estatueta partida, Adriana fechou-se no quarto a chorar.
Permaneceu aí duas horas. Acalmou-se, fez a mala, abriu a porta do
quarto. Assomou à sala, prestes a anunciar a sua despedida, mas
encontrou Justino a ouvir música, certamente jazz, com os
auscultadores nos ouvidos, de olhos fechados. E viu-o, mais uma vez.
Viu, não quem ele era, mas quem ele podia ser. A maneira como
arqueava as sobrancelhas e mexia os lábios, a maneira como
respirava. Adriana viu o rapaz que conhecera aos vinte e dois, viu o
rapaz que sonhara, viu o rapaz por quem se apaixonara. Voltou ao
quarto e nunca ninguém soube da sua quase-partida.
Hoje,
naquele dia, Adriana via o mesmo. Toda a imagem, aliás, fazia parte
de um quadro, e se a sua versão adolescente tivesse viajado ao
futuro e visse aquele quadro, ficaria contente com o que lhe
prometiam. Mas que pena que as pessoas sejam mais complexas do que
uns pequenos instantes aqui e ali. Que pena que não possamos filtrar
e mandar fora tudo aquilo que não interessa. Que pena que aquela
pessoa que calmamente ouvia palavras cantadas há cinquenta anos,
ritmando suavemente com o pé direito, fosse a mesma pessoa que uma
vez a tinha ido buscar ao quarto onde chorava descontroladamente, a
agarrado com os dois braços pela cinta e a atirado para o sofá da
sala, com um dedo em riste e berros e saliva e lágrimas e crianças
confusas no quarto do lado. Que pena. Era impossível deixar-se levar
mais. O fosso entre eles era demasiado grande e, não se conseguindo
já tocar, por mais que esticassem os braços, podiam apenas
ouvir-se. Mas o fosso abria, abria, abria tanto que, naqueles tempos,
precisavam de gritar para o lado de lá do fosso para serem ouvidos.
O fosso não parava de abrir, e os gritos deixariam de ser ouvidos e,
mais tarde ou mais cedo, cada um teria de voltar as costas e procurar
alguém que estivesse do mesmo lado daquele desfiladeiro. Talvez
houvesse alguém. Havendo alguém podiam, quem sabe, antecipar o
fosso e começar a construir largas e compridas pontes antes que ele
aparecesse, pontes que lhes permitissem continuar a tocar-se por mais
que o fosso quisesse abrir-se, pontes que permitissem a um enamorado
viajar para o lado do outro e ficar aí para sempre, deixando o fosso
levar consigo os seus velhos modos, hábitos e manias. Adriana
receava, contudo, que o fosso para os lados de Justino dessem toda a
volta, e o seu marido estivesse condenado à solidão.