Do Romance "Ventre", por editar, António Pedro Moreira
Capítulo
XIV
Ademiro
abriu os olhos. Lembrava-se dos seus colegas e dava por si a
questionar se eles questionariam a sua ausência. “Deve estar morto
aí numa valeta qualquer”, imaginava-os a dizer. Queria sentir
falta deles. Mas não sentia nada. Mais que tudo sentia falta das
ruas abertas, e de poder sentar-se num banco de jardim a olhar para
as pessoas. Tinha saudades, não tanto de ser mirone nos aeroportos,
mas da oportunidade de o ser.
Talvez nesse dia o deixassem sair. Estava farto daquelas paredes.
Tinha-se habituado tanto ao Vento que as ventoinhas do hospital
pareciam mentiras descaradas. “Será que podia abrir a janela?”,
perguntava, recebendo sempre o mesmo não como resposta. Ademiro
sentia-se no hospital como um tigre no Congo. Estava rodeado de seres
que até eram parecidos como ele. Mas não eram como ele. Ele
não era dali, não pertencia ali. O cheiro, as batas, os doentes, os
berros, tudo lhe ia direito ao fundo do seu estômago, que se
contraia dolorosamente. Queria ir embora. E o mais rápido possível.
Mas agora tinham descoberto um cancro, e teria de voltar rotinamente
para o tratamento. Como é que toleraria isso? Como é que toleraria
que o hospital onde morrera fizesse parte da sua salvação?
Levantou-se, a custo, e esticou as costas. Sentiu-se momentaneamente
oirado, esperou, e regressou a si. Saiu pelo corredor, entrou no
elevador, desceu. Saiu cá fora, respirou um pouco de ar puro e
desejou não estar com aquela bata e poder simplesmente sair, sempre
em frente até não poder mais. E quando não pudesse mais deitar-se
mesmo ali, fora da loja mais próxima e dormir. No dia seguinte,
repetir tudo outra vez.
Voltou para dentro e sentou-se ao lado de um menino de sete anos e
óculos muito grossos, que aguentava um urso de peluche roxo, não
maior que um palmo. Tinha um olhar vazio e assustado, e deveria ser
filho da senhora que, ao seu lado, sentada também nas cadeiras de
plástico com a cabeça encostada à parede, parecia dormitar.
- Como é que se chama esse urso tão encantador? – perguntou. O
menino olhou para si e Ademiro sentiu como se o puto tivesse crescido
de repente, tornado-se num homem feito e lhe tivesse dado como
indicador no meio dos olhos. Porque aquele menino olhava para si de
uma forma diferente. Porque aquele menino olhava para si sem o
destinguir dos outros. Quando toda a gente nos olha de forma
diferente, esse diferente passa a ser o nosso normal, e esquecemo-nos
o que o normal realmente representa. Aquelas expressões de
desconfiança ou de meias-palavras passam a ser a norma. Aquele
menino, contudo, olhava para ele como se ele fosse só mais um. Seria
de não estar com as suas roupas mal andrajadas? Não, não era isso.
Tinha acabado de vir de lá de fora e não sentira o impacto que
sentira nos olhos daquele benjamim.
- Adriano – respondeu, triste, o menino.
- E o Adriano está aqui porquê?
- O pai dele foi para o céu – respondeu, mirando o chão,
baixinho, talvez para não acordar a mãe.
- Ah, que pena... – respondeu Ademiro, subitamente encavacado sem
saber como confortar um menino de sete anos, especialmente não
podendo mentir uma única vez.
- Como te chamas?
- Adriano.
- Tens o mesmo nome do ursinho?
- Tenho – respondeu, levantando olhar e puxando as lentes para a
sua retina com o dedo do meio.
- Sabes, Adriano... o meu pai também foi para o céu. Há muito
tempo.
- Que é que lhe aconteceu? – perguntou. Ademiro encostou-se para
trás, os óculos de Adriano apontados a si, estudando-lhe o estranho
bigode e a cabeleira cinzenta.
Em 1975 Ademiro tinha quinze anos de idade. Acordou, no Sábado de 20
de Dezembro, e ficou na cama alguns minutos a olhar para a chuva lá
fora, sem pensar no Natal que se aproximava, sem pensar na
turbulência política que o país passava, sem pensar no ano novo
que se avizinhava. Ademiro pensava ardentemente em F. Scott
Fitzgerald e no Great Gatsby, que acabara de ler na noite anterior. O
livro, que lia em inglês, tinha sido uma prenda secreta da sua
professora de línguas, a calorosa Miss Brandão, com quem, Ademiro
pensava, mantinha uma relação platónica. A meio da leitura,
Ademiro decidiu ler só dez páginas por dia. Sentia cada página com
tal beleza que não queria que aqueles momentos acabassem. Sim,
poderia voltar a ler aquele livro, e fá-lo-ia certamente, talvez
dezenas de vezes ao longo da VIDA, mas só ia ter aquela primeira
vez. Só ia ter uma primeira vez e uma última vez, todas as
restantes poder-se-iam trocar entre si que não lhe fariam diferença.
A última apareceria disfarçada de vez ordinária, sendo que,
Ademiro pensava, não poderia adivinhar a sua morte. Pelo que apenas
aquela vez, aquela primeira vez, poderia ser apreciada como
algo de especial. Mas chegou o dia 19 de Dezembro, e o livro acabou.
Se as leituras secretas eram, há algum tempo, um prazer a que
Ademiro se entregava sem reservas, começaria, naquela manhã chuvosa
do dia 20 de Dezembro, uma busca pelo livro perfeito. Leria tudo o
que encontrava. Leu todos os clássicos portugueses, entregou-se a
autores ingleses na sua língua e achou que poderia fazer o mesmo com
espanhol. Sem mais conhecimento nesta língua do que as similiridades
com a sua própria ofereciam, Ademiro começou a ler XXX, com um
dicionário ao lado que surripiara da biblioteca do seu liceu. Após
a primeira vintena, que se revelara custosa, dominava já com algum
talento a língua dos nuestros hermanos, tendo memorizado
milhares de palavras que se apresentavam diferentes das suas
homólogas portuguesas. Como aprendera espanhol lendo, apenas, seria
com muita graça que Maria Espinosa, uma vendedora de jornais na rua,
escutaria o seu sotaque, dez anos mais tarde, quando Ademiro decidiu
levar a sua esposa a Salamanca para um fim-de-semana de Verão.
Até então Ademiro entregara-se à leitura por duas ou três razões,
a dúvida em relação ao número prendendo-se com a dificuldade que
se pode ter em dividir duas delas. Ademiro gostava de ler,
simplesmente. E isso pode ser visto como uma razão. Mas, será que
nós podemos gostar de algo, assim tão simplesmente, ou será que há
sub-razões por detrás da razão mais aparente que, mais
verdadeiramente, nos explicam o porquê nos nossos apeteceres? Como
Ademiro era o único entre os seus pares que lia algo que não fossem
os livros de escola ou as revistas eróticas do pai de Guilherme que
o seu amigo alugava a XXX escudos ao dia, achou que teria de haver
uma razão mais forte do que o simples gostar. Então Ademiro decidiu
que apenas se pode gostar realmente e por si só de aspectos
elementares da VIDA, nomeadamente os ligados aos sentidos. Podemos
gostar de uma massagem, de uma melodia, de um sabor ou de um cheiro,
porque nos entram directamente na alma crus. Quanto a uma visão,
Ademiro assumia que podemos apenas gostar de algo que é
abstractamente belo, permitindo a relatividade em relação ao
adjectivo. Um quadro que representasse algo nitidamente, ou uma
paisagem, ou uma mulher bonita, não poderiam ser apreciados com a
mesma pureza, pois podiam-se descontruir sem muito esforço.
Gostávamos da paisagem porque parecia ser um sítio sereno onde se
viver, se fosse isso que procurávamos, de uma mulher bonita porque
parecia saudável e daí talvez de bom porte para as nossas crianças,
e por aí fora. Não se atrevendo a partilhar os seus pensamentos com
os seus amigos, tinha de servir como seu próprio advogado do diabo.
- Então e quando gostamos de algo, mas não descobrimos nenhuma
sub-razão para isso?”, perguntava-se.
- É porque não estamos dotados com a real inteligência de perceber
a sub-razão – respondia-se.
- Mas... o mesmo não se pode dizer em relação às sensações
elementares? Que simplesmente não estamos dotados de inteligência
para perceber as sub-razões? – baralhava-se.
Assim, Ademiro tinha percebido que a razão pela qual gostava tanto
de ler era porque isso, como a tanta gente, ainda que para muitos
destes sem o seu conhecimento, permitia-lhe fugir dali. Quando lia,
Ademiro não era aquele miúdo com aquele pai e aquela mãe naquela
casa. Se gostava mais de uma escrita que doutra, não era porque era
mais bonita, mas porque lhe oferecia uma descrição mais precisa,
que lhe permitia uma maior absorção, um maior voo.
A mãe bateu à porta três vezes, um segundo entre cada. Ademiro
olhou para a direita e viu a sua progenitora entrar-lhe no quarto com
cuidado, um tabuleiro verde cansado com uma caneca a fumegar e um pão
com fiambro e queijo.
- Que é que se passa? – perguntou Ademiro, semi-levantando-se
assustado.
- Não se passa nada, filho, porquê? – perguntou a mãe. Trazia
consigo um sorriso de quem o desaprendera. O cabelo estava amarrado
num puxo atrás, exacerbando a oleosidade que a tinha vindo a
caracterizar ao longo dos anos. Uma camisa de cetim azul enfiada na
saia preta com riscas verticais cinza claras e uns chinelos castanhos
nos pés. Todavia, o que mais se via era a pisadura debaixo do olho a
espreitar por debaixo da base que sua mãe pedira emprestada a
Geralda, sua meia-irmão, que seu pai trouxera de África.
- Que é isso? – perguntou, apontando o tabuleiro.
- Então, é o teu pequeno-almoço, que queres que seja? –
respondeu, como se não fosse a primeira, mas a enésima vez que
trazia o pequeno-almoço à cama do filho. Acostumado ao imprevisto
nas ondas de sua mãe, especialmente desde que perdera a sua irmã
Margarida num aborto espontâneo causado por uma escadaria que se
meteu no caminho, Ademiro decidiu não dizer mais nada.
- Depois de comer vou ficar na cama até à hora do almoço, está
bem, mãe? – perguntou.
- Ah, nem pensar! Hoje quero limpar a casa toda, quero deixar tudo
num brinco, e tu vais ajudar-me percebes? – respondeu sua mãe,
hirta, com um dedo no ar. Ademiro curvou-se para a esquerda e tirou
da gaveta da mesinha-de-cabeceira um livro.
- Queria aproveitar que não tenho aulas para ler a bíblia, mãezinha
– e o rosto da abriu-se, no melhor que podia fazer, as rugas
perdendo-se na magreza das peles.
- Ah, que rico filho – respondeu. Pousou o tabuleiro no chão e
sentou-se na cama, de frente para Ademiro. Passou-lhe a mão direita
na cara, ao de leve, quase como se não lhe tocasse. – Tu gostas da
mãe? – perguntou, para embaraço de Ademiro que, tal como seu pai,
preferia mostrar os seus sentimentos em vez de falar deles, apesar de
serem sentimentos geralmente inversos. Ademiro olhou para a colcha
azul clarinho e passou-lhe as a mão como a sua mãe passava na cara.
- Gosto, mãe, claro que gosto... – respondeu baixinho.
- Olha para mim – Ademiro levantou o olhar e o da sua mãe sugou-o,
puxou-o com força. O olhar da sua mãe era triste como o Inverno da
VIDA. Naqueles olhos castanhos cabiam todos os livros tristes que já
tinha lido e os que leria, deles as lágrimas que vinham choravam
também, e deles vinha um pedido de qualquer coisa. – Eu amo-te
muito. Que Deus esteja contigo e te protega – disse, levantando-se
a custo e deixando-lhe um beijo na testa.
Quando saiu do quarto e deixou a porta bege separá-los, Ademiro
esperou um pouco. Ouviu os degraus queixarem-se e levantou-se.
Levantou o colchão e aguentou-o no ombro. Tacteou com a mão
esquerda e encontrou o que procurava. Tirou Franny & Zooey, de J.
D. Salinger, esperando conseguir acabar aquele fino livro até ao
almoço. Deixou o colchão cair suavemente. Deu a volta à cama e,
pelo caminho, espreitou pela janela, vendo sua mãe lá fora, à
chuva, a varrer qualquer coisa. A tristeza da sua mãe andava pelas
paredes da casa há muito tempo. Não começara com Margarida, mas
quando esta ficou na carpete vermelha da escadaria, numa mancha mais
escura que mal se via, e que assim ficou para sempre, a sua mãe
desistiu. Ademiro não sabia quando começara a tristeza de sua mãe
ou se começara de todo. Ademiro não sabia se alguma vez sua mãe
tinha sido feliz. Não sabia se tinha nascido com a sombra atrás de
si ou se tinha sido seu pai que a pousara sobre os seus ombros, com
promessas de que estava frio lá fora e assim era melhor. Ademiro não
sabia nada disto, e tinha medo de saber. A tristeza de sua mãe
assustava-o. Só muitos anos mais tarde, vagueando as ruas do Porto,
olhando para o que lhe parecia ser pai e filho a darem um abraço de
despedida na Batalha, é que Ademiro se apercebeu que talvez as suas
palavras pudessem ter atrasado, ou anulado, o que se revelou
inevitável. “Seria mesmo inevitável?”, questionar-se-ia
Ademiro, ao longo dos anos, procurando uma razão. “Se aconteceu é
porque era inevitáel... porque o único cenário que aconteceu foi
esse. Antes de acontecer não era inevitável. Mas ao acontecer assim
se tornou...”, pensava, dando nós cegos à volta da corda que lhe
apertava o pescoço.
- O pai não vem almoçar? – perguntou Ademiro, sentado à mesa,
com a colher no ar.
- O teu pai está a trabalhar. Sabes, o teu pai trabalha muito –
respondeu sua mãe, de costas. Virou-se com um tacho grande cinzento
e, aproximando-se da mesa redonda com uma toalha de plástico branco,
verteu duas colheradas de sopa de feijão branco para o filho. – Às
tantas também não vem jantar. Porque está a trabalhar. O teu pai
trabalha muito, sabes? – repetia – Mas se ele estiver a jantar tu
levas-lhe o jantar ao trabalho, não levas, Ademiro? – perguntou,
oferecendo com isso um secreto suspiro de alma ao seu filho, que cria
saber algo que sua mãe não sabia.
A tarde foi-se arrastando preguiçosa, durando dois Invernos as duas
horas que Ademiro passou com sua mãe de joelhos a rezar uma data de
padres nossos e avés maria frente a uma estátua de palmo e meio de
Jesus nos pregos. Ademiro andava há anos à espera de um sinal que
teimava não vir. A sua mãe estava sozinha naquele enorme universo
sem mundos nem luas e Ademiro queria encontrar-se com ela lá. Mas
tudo o que conseguia era vê-la por detrás de um vidro muito grosso,
criando a mera ilusão de que estavam lado a lado, quando no fundo
aquele vidro encerrava em si toda uma existência entre cada uma
daquelas almas. Já o seu pai nunca rezava e, podia dizer-se com
algum conforto, não era o mais fiel seguidor das escrituras. No
entanto, não havia Domingo em que não comparecesse na missa, pra
gáudio do filho, que podia ver os pais ao mesmo tempo sem ninguém
estar a esbracejar e sem sentir o peito a arder em ansiedade.
A chuva descansou duas horas e passou então Ademiro o resto da tarde
a raspar o musgo que se acumulara no pequeno muro que dava para o
canteiro de morangos que a mãe tinha como filhos adoptivos. Chegada
a hora do jantar chovia novamente torrencialmente e Ademiro, que não
se deixou demover da sua tarefa, confirmou que o seu pai não viria.
- Ademiro! Ademiro! – chamou sua mãe, não conseguindo sua voz
suplantar o barulho da chuva. Tirou um guarda-chuva preto de um
canteiro molhado e aproximou-se do rapaz. – Ademiro! Anda para
dentro, já chega, está bom – disse, mais calmamente. Ademiro
sacudiu-se à porta e entrou. Preparava-se para ir tomar banho quando
a mãe lhe estendeu um tupperware dentro de um pano de limpar
a louça. – Leva isto ao teu pai, que ele está a trabalhar. Diz
que é para o amigo dele também, ouviste? É para os dois, não é
só para ele. Se o amigo dele não quiser insiste. Depois anda de
caminho para casa para jantarmos os dois, ouviste? Hoje jantamos os
dois. Em família. Está bem, meu querido?
- Está bem, mãe – respondeu Ademiro, a chuva emprestada
precipitando-se no chão de xadrez. Ademiro pegou no tupperware,
meteu-o na cesta da bicicleta e partiu, pensando na mãe e no quão
particularmente estranha ela estava naquele dia. Quando chegou
encostou a bicicleta ao muro e tocou à campaínha. Adelina abriu
quase um segundo depois, como se estivesse à espera do rapaz com o
seu manjar. Tinha uma camisa de dormir até aos pés bege e Ademiro
esforçava-se por não olhar para os bicos das mamas que o
cumprimentavam tentadoramente.
-
Entra, Ademiro, entra, que estás todo molhado! Que é que trazes aí?
-
Bacalhau à Braz, foi a minha mãe que mandou – respondeu,
procurando, com o olhar, o seu pai. Entrou para o pequeno corredor,
virou à esquerda e, entrando na sala, viu seu pai estendido no sofá,
com a televisão ligada e uma garrafa de vinho de mesa tombada no
chão. Dormia profundamente.
-
Pai. Pai... – chamou, a medo, apenas duas vezes. Não queria que o
seu pai acordasse, podia estar bêbedo e nunca se sabia o que isso
implicava. Mas queria, mais logo, poder dizer que o tinha chamado e
ele é que não tinha acordado. Adelina aproximou-se com dois pratos.
-
Ele agora não acorda tão cedo.
-
Eu tenho de ir embora, Dona Adelina. A minha mãe mandou isso para...
a minha mãe disse que o bacalhau dá para duas pessoas à vontade.
-
Obrigado. Eu vou comer já, que estou cheia de fome, e o teu pai come
quando acordar – respondeu, passando-lhe as mãos nos cabelos
castanhos. – Não queres comer comigo?
-
Não, obrigado... dói-me a barriga. Acho que foi dos morangos...
-
Está bem, vai lá então...
Quando
Ademiro chegou a casa sua mãe esperava-o sentada na mesa, estática,
frente ao seu prato de onde Ademiro via vapor a dançar. As luzes
estavam todas apagadas e duas velas iluminavam a sala triste.
-
Não há luz, mãe?
-
Há, filho. Mas hoje quero que jantemos assim. Anda, senta-te –
ordenou. Ademiro apontou para as suas roupas. – Depois lavas-te.
Come agora comigo, anda.
-
Mas mãe... estou todo molhado. E doi-me a barriga. Não sei que
tenho.
-
Comeste os morangos?
-
Comi. – respondeu, baixinho, olhando sua mãe a medo. Sua mãe, tal
como seu pai, assustava-o. Mas, se seu pai o assustava porque Ademiro
tinha medo daquilo que o pai podia provocar nele, fosse isso uma
surra ou um raspanete, sua mãe assustava-o porque Ademiro tinha medo
daquilo que ele próprio podia provocar na mãe. Viver sem esse medo
implicaria deixar-se levar pela espontaneidade, o que, muitas vezes,
resultava em amargos soluços da sua mãe, que via nos mais variados
comportamentos do seu filho uma prova da sua insignificância.
-
Eu não te disse? Ó filho... tu nunca me ouves, tu nunca me ouves...
eu disse-te que ainda não estava na altura. E p’ra mais, estão
cheios de sulfato. Tu nunca me ouves, tu nunca me ouves... – dizia,
baixinho. Ademiro olhou para o chão. – E agora? Agora fico
sozinha, não é? Sempre sozinha, sempre sozinha, sempre sozinha...
-
Não, mãezinha, eu sento-me aqui consigo – disse Ademiro,
deslizando para a cadeira de veludo verde que jingou com o seu peso.
-
Não, vai tomar banho. A seguir podes ir para a cama, se quiseres.
Vai.
-
Mas, mãe
-
Vai, ouviste?! - ordenou.
Ademiro
olhou para a mãe com força. Não descobria nada. Procurava, mas não
descobria nada. Sentia-se como um fraco caçador numa rica reserva,
consciente de toda a caça à sua volta mas incapaz de deitar o olho
a nada. Deu um passo para trás lentamente, deu meia volta e subiu as
escadas.
No
chuveito pensava nos peitos de Adelina e sentia-se duro como um
penedo. Das primeiras vezes Ademiro obrigava-se a pensar noutra coisa
qualquer e se não conseguia resistir à libertação, sentia-se
imensamento culpado, como se tivesse traído a mãe e o pai de uma só
vez. Mas essas tinham sido as primeiras vezes, que já lá iam.
Nestas alturas Ademiro não tinha travão. Libertou-se então do que
tinha a mais, puxou de uma toalha azul gasto e limpou-se. Enrolou-a à
cinta e entrou logo no quarto, à esquerda, que fazia esquina com o
quarto-de-banho. Ainda era cedo, podia acabar a última dezenas de
páginas do Franny & Zooey e atirar-se ao Catcher In The Rye, do
mesmo autor. Tirou o pijama beje de trás da almofada, pendurou-o no
radiador dois minutos e vestiu-o. Tirou o livro de debaixo do colchão
e enfiou-se naquele idílio que lhe permitiria umas boas duas ou três
horas com palavras escritas por um amigo seu. Todos os escritores
eram seus amigos.
Às
onze da noite teve de parar. O silêncio começava a entrar-lhe pelos
ouvidos e não o conseguia ignorar. Fechou o livro, saiu da cama,
abriu a porta. "Mãe! Mãe!", chamou, do topo das escadas.
Desceu, passo ante passo, a medo, como se não quisesse que o
descobrissem. As escadas estalavam uma de cada vez com cuidado, como
se elas próprias não quisessem chamar de descuidado ao seu presente
ocupante. "Mãe!", voltou a chamar. Nada. O seu coração
acelerou, gotas de suor materializaram-se na sua testa. Entrou no
hall,
entrou na cozinha. As velas tremiam com vontade de morrer e a sua mão
não tremia por ter já morrido. A cadeira estava deitada no chão e
a sua mãe com ela, como se tivessem tombado em conjunto e o corpo da
mãe tivesse rebolado um pouco para o lado de Ademiro. Tinha o braço
esquerdo apontado para a frente e estava de barriga para baixo.
"Mãe?" Quando se aproximou reparou que o prato de comida,
partido, via tudo do outro lado do corpo. Virou a mãe e viu-a de
olhos abertos, uma poça de vómito debaixo das mamas e espuma na
boca. Não percebeu de imediato. "Mãe? Mãe!!" Abanou-a
com os dois braços nos ombros, nada. Começou a respirar como se
tivesse passado a VIDA toda debaixo de água até àquele momento e
levantou-se, sempre a chamar pela mãe, ora em tom de pergunta, em
tom de súplica, em tom de prece. "Mãe? Mãe! Mãe...".
Mas ela não ia acordar mais. O seu olhar tomou controlo e pousou-se
sobre o tacho de bacalhau à braz que o esperara essa noite para o
jantar. Aproximou-se, cheirou a comida, mas não lhe cheirava a nada.
Bacalhau à braz, simplesmente. Mas seria possível? Ademiro começou
a ver desfilar perante os seus olhos os cenários, e todos pareciam
dar no mesmo. Virou-se, correu para a porta, abriu-a com violência e
deitou-se a correr, o espetáculo fúnebre que reinava na sua casa
ali à vista de quem quisesse entrar. Correu, correu, correu,
amaldiçoando-se por não ter querido encher o pneu que se queixava
quando regressara a casa para o jantar. Algumas gotas batiam-lhe na
testa e já não se sabia o que era chuva ou transpiração. O
coração de Ademiro trabalhava zangado, desabituado a tanto. Teve de
parar quatro segundos, perto do café do Zeca, e respirou fundo com
as mãos aguentadas nos joelhos. E voltou a correr. Correu, correu,
correu. E depois bateu à porta com força com o punho da mão
direita. Duas, três, cinco, dez vezes. Ninguém abria. Desceu dois
metros na rua e abriu a janela, Esgueirou-se. "Pai? Dona
Adelina?"
Deu
com Adelina deitada no quarto-de-banho, a mão direita ainda agarrada
à beira da sanita. Vómito, espuma e morte. Estacou a olhar para a
mulher e já não chorava. Respirava lentamente mas com potência
dentro de si. Preparou-se. Na sala não encontrou o pai. A garrafa
ainda lá estava. Subia as escadas quando encontrou o corpo do pai,
deitado de lado encostado à parede, como se descansasse, quase.
Tinha a camisa suja, mas não tinha o vómito ou a espuma. Mas tinha
a morte. Morrera do mesmo, mas as coisas tinham-se passado de maneira
diferente. Estava morto. Dona Idalina estava morta. Sua mãe estava
morta. Sentou-se, apático, e passou-lhe pela cabeça todo o tempo
que teria para ler daí em diante. E depois chorou, culpando-se por
tal ideia lhe ter atravessado o espírito.
Ademiro
morrera duas vezes na sua VIDA. Essa foi a primeira vez.